Como um Estado totalitário é realmente formado

Jo Pires-O’Brien

“As pessoas costumam ter ideias erradas acerca de como os Estados totalitários são formados, sendo que os dois erros mais comuns são: (i) imaginar que o Estado totalitário consiste em um tirano maléfico e indivíduos oprimidos, e (ii) imaginar que no Estado totalitário as catástrofes cascateiam de cima para baixo.”

Quem diz isso é o psicólogo e intelectual público canadense Jordan Peterson, numa de suas palestras em YouTube, na qual ele singulariza dois casos que provam o contrário dessas duas presunções, mostrados pelos autores Alexandre Solzhenitsyn (1918-2008) e Christopher Browning (1944-).

Solzhenitsyn escreveu O arquipélago gulag onde registrou a realidade dos ‘gulags’ – plural do acrônimo designador do sistema de prisões da União Soviética, que eram verdadeiros campos de trabalho forçado, onde o próprio Solzhenitsyn esteve preso durante muitos anos em decorrência de ter criticado o regime de Joseph Stalin (1878-1953) numa carta particular interceptada. Em  O arquipélago gulag, um livro terrível e enérgico, escrito com a esmagadora força moral da verdade sem verniz, Solzhenitsyn conta que durante o período que passou detido no gulag, ele aproveitou para refletir sobre as possíveis ações dele próprio que poderiam ter servido para validar o sistema, e se lembrou de que, quando jovem, havia apoiado sem questionar o Partido Comunista soviético. Solzhenitsyn reconheceu as coisas que fez no passado, verdadeiras traições à sua própria integridade moral.  O livro descreve os cruéis administradores dos gulags, que eram os próprios presos, todavia, não os políticos, mas aqueles que haviam cometido crimes de verdade.  Stalin não era o único tirano na União Soviética, pois lá havia tirania em todos os níveis. Em O arquipélago Gulag, contrabandeado para o Ocidente nos anos 70,  Solzhenitsyn demoliu por completo a credibilidade intelectual do comunismo, como ideologia ou sociedade.

Browning escreveu o livro Holocaust, um estudo psicológico de 101 policiais nazistas alemães enviados para a Polônia em 1942 para aterrorizar os judeus como parte da missão da ‘solução final’ nazista.  Os psicólogos queriam entender como é que esses policiais acabaram se tornando perpetradores do Holocausto, embora não tivessem sido doutrinados pela organização ‘Hitler Youth’, por serem mais velhos. Browning descreve os pormenores da transformação psicológica dos policiais envolvidos. Tudo começa com um dos chefes explicando aos seus subordinados que eles terão que fazer coisas ruins, e que, os que não quiserem fazer esse tipo de coisa, podiam voltar para casa. No entanto, a força policial não era conducente à dissensão pelo fato de ser uma organização quase militar e fechada. O raciocínio mais natural nessas circunstâncias era: ‘Eu não vou deixar que meus colegas façam todo o trabalho sujo, pois isso seria covardia’.  Havia um elemento ético que mantinha o indivíduo lá, no fato de que a opção de ir para casa não seria percebida como um ato heroico. Assim sendo, os indivíduos se envolveram com facilidade no esquema do Holocausto. Entretanto, os requisitos para a permanência na organização policial continuaram aumentando. Cada instância em que um policial aceitava fazer uma coisa terrível, aumentava a probabilidade de ele fazer algo ainda mais sórdido. Isso não significa que os policiais alemães não tivessem sofrido com a situação onde se encontravam, quer mental, quer  fisicamente, mas que, apesar disso, eles não desistiram da missão. A conclusão do estudo foi de que qualquer pessoa comum pode ser aliciada a fazer coisas horríveis.

Peterson cita uma terceira importante tirania do século XX, a da Alemanha Oriental, onde uma em cada três pessoas era informante do governo. Isso significa que numa família de seis pessoas havia duas em quem você não podia confiar.

Quando as pessoas aprendem acerca das tiranias do século XX, é comum imaginarem que se elas estivessem vivendo numa situação similar elas não seriam perpetradores de crueldades. Ao assistir filmes como A Lista de Schindler, uma boa parte das pessoas imagina-se que se estivessem naquele mesmo lugar e tempo, elas seriam os heróis e não os perpetradores de crimes e maldade. Entretanto, os dados de pesquisas sobre personalidades humanas mostram que não é isso o que ocorre na vida real. Uma boa parte dos culpados pelas grandes tiranias do século XX é composta por indivíduos ordinários que abdicaram à própria integridade moral.

É um engano pensar que a tirania vem de cima para baixo na estrutura política social. A tirania é algo que existe em todos os lugares em simultâneo. É fácil para os perpetrantes de atos tirânicos ou cruéis justificarem-se com frases do tipo ‘eu estava apenas cumprindo ordens’. A aceitação da responsabilidade individual é a única maneira de evitar que as tiranias do século XX se repitam no futuro.

Postscriptum

A fictícia Belíndia é um Estado emergente e cuja vulnerável democracia pode retroceder a qualquer momento. Ali não há um grande tirano corrupto, mas centenas de pequenos tiranos corruptos dentro de uma máquina estatal de fraca responsabilização. É possível que muitos desses pequenos tiranos corruptos tenham sido éticos e honestos em algum ponto de suas vidas. A mudança de rumo para a corrupção quase sempre ocorre gradualmente. Pode começar com um pequeno deslize em uma prestação de contas, ou uma vista grossa para os erros de um colega especial. Cada deslize cometido aumenta a probabilidade de um próximo de proporção ainda maior.

 

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