Como um Estado totalitário é realmente formado

Jo Pires-O’Brien

“As pessoas costumam ter ideias erradas acerca de como os Estados totalitários são formados, sendo que os dois erros mais comuns são: (i) imaginar que o Estado totalitário consiste em um tirano maléfico e indivíduos oprimidos, e (ii) imaginar que no Estado totalitário as catástrofes cascateiam de cima para baixo.”

Quem diz isso é o psicólogo e intelectual público canadense Jordan Peterson, numa de suas palestras em YouTube, na qual ele singulariza dois casos que provam o contrário dessas duas presunções, mostrados pelos autores Alexandre Solzhenitsyn (1918-2008) e Christopher Browning (1944-).

Solzhenitsyn escreveu O arquipélago gulag onde registrou a realidade dos ‘gulags’ – plural do acrônimo designador do sistema de prisões da União Soviética, que eram verdadeiros campos de trabalho forçado, onde o próprio Solzhenitsyn esteve preso durante muitos anos em decorrência de ter criticado o regime de Joseph Stalin (1878-1953) numa carta particular interceptada. Em  O arquipélago gulag, um livro terrível e enérgico, escrito com a esmagadora força moral da verdade sem verniz, Solzhenitsyn conta que durante o período que passou detido no gulag, ele aproveitou para refletir sobre as possíveis ações dele próprio que poderiam ter servido para validar o sistema, e se lembrou de que, quando jovem, havia apoiado sem questionar o Partido Comunista soviético. Solzhenitsyn reconheceu as coisas que fez no passado, verdadeiras traições à sua própria integridade moral.  O livro descreve os cruéis administradores dos gulags, que eram os próprios presos, todavia, não os políticos, mas aqueles que haviam cometido crimes de verdade.  Stalin não era o único tirano na União Soviética, pois lá havia tirania em todos os níveis. Em O arquipélago Gulag, contrabandeado para o Ocidente nos anos 70,  Solzhenitsyn demoliu por completo a credibilidade intelectual do comunismo, como ideologia ou sociedade.

Browning escreveu o livro Holocaust, um estudo psicológico de 101 policiais nazistas alemães enviados para a Polônia em 1942 para aterrorizar os judeus como parte da missão da ‘solução final’ nazista.  Os psicólogos queriam entender como é que esses policiais acabaram se tornando perpetradores do Holocausto, embora não tivessem sido doutrinados pela organização ‘Hitler Youth’, por serem mais velhos. Browning descreve os pormenores da transformação psicológica dos policiais envolvidos. Tudo começa com um dos chefes explicando aos seus subordinados que eles terão que fazer coisas ruins, e que, os que não quiserem fazer esse tipo de coisa, podiam voltar para casa. No entanto, a força policial não era conducente à dissensão pelo fato de ser uma organização quase militar e fechada. O raciocínio mais natural nessas circunstâncias era: ‘Eu não vou deixar que meus colegas façam todo o trabalho sujo, pois isso seria covardia’.  Havia um elemento ético que mantinha o indivíduo lá, no fato de que a opção de ir para casa não seria percebida como um ato heroico. Assim sendo, os indivíduos se envolveram com facilidade no esquema do Holocausto. Entretanto, os requisitos para a permanência na organização policial continuaram aumentando. Cada instância em que um policial aceitava fazer uma coisa terrível, aumentava a probabilidade de ele fazer algo ainda mais sórdido. Isso não significa que os policiais alemães não tivessem sofrido com a situação onde se encontravam, quer mental, quer  fisicamente, mas que, apesar disso, eles não desistiram da missão. A conclusão do estudo foi de que qualquer pessoa comum pode ser aliciada a fazer coisas horríveis.

Peterson cita uma terceira importante tirania do século XX, a da Alemanha Oriental, onde uma em cada três pessoas era informante do governo. Isso significa que numa família de seis pessoas havia duas em quem você não podia confiar.

Quando as pessoas aprendem acerca das tiranias do século XX, é comum imaginarem que se elas estivessem vivendo numa situação similar elas não seriam perpetradores de crueldades. Ao assistir filmes como A Lista de Schindler, uma boa parte das pessoas imagina-se que se estivessem naquele mesmo lugar e tempo, elas seriam os heróis e não os perpetradores de crimes e maldade. Entretanto, os dados de pesquisas sobre personalidades humanas mostram que não é isso o que ocorre na vida real. Uma boa parte dos culpados pelas grandes tiranias do século XX é composta por indivíduos ordinários que abdicaram à própria integridade moral.

É um engano pensar que a tirania vem de cima para baixo na estrutura política social. A tirania é algo que existe em todos os lugares em simultâneo. É fácil para os perpetrantes de atos tirânicos ou cruéis justificarem-se com frases do tipo ‘eu estava apenas cumprindo ordens’. A aceitação da responsabilidade individual é a única maneira de evitar que as tiranias do século XX se repitam no futuro.

Postscriptum

A fictícia Belíndia é um Estado emergente e cuja vulnerável democracia pode retroceder a qualquer momento. Ali não há um grande tirano corrupto, mas centenas de pequenos tiranos corruptos dentro de uma máquina estatal de fraca responsabilização. É possível que muitos desses pequenos tiranos corruptos tenham sido éticos e honestos em algum ponto de suas vidas. A mudança de rumo para a corrupção quase sempre ocorre gradualmente. Pode começar com um pequeno deslize em uma prestação de contas, ou uma vista grossa para os erros de um colega especial. Cada deslize cometido aumenta a probabilidade de um próximo de proporção ainda maior.

 

A idade da desonestidade. O pós-modernismo é errado porque é falso

A idade da desonestidade. O pós-modernismo é errado porque é falso
Joaquina Pires-O’Brien

Modernidade e a pós-modernidade
A modernidade e a pós-modernidade são concepções diferentes do mundo. Enquanto que a modernidade baseia-se no Iluminismo e nos avanços do racionalismo e da ciência, a pós-modernidade baseia-se na ruptura com o Iluminismo e com o rigor do racionalismo e da ciência. Dentro da concepção da modernidade surgiu a escola linguística estruturalista, que ao ser absorvida por outras disciplinas das humanidades e das ciências sociais gerou uma visão geral do mundo baseada no conhecimento e na realidade, a qual passou a ser chamada de estruturalismo. Dentro do estruturalismo surgiram dissidências, as quais não lograram criar uma visão explícita que merecesse o nome de escola filosófica, mas mesmo assim passou a identificar-se como pós estruturalismo. A abordagens respectivas da modernidade e da pós-modernidade confundem-se com essas, e por essa razão, modernidade e estruturalismo viraram sinônimos, assim como pós-modernidade e pós-estruturalismo.
Pós-modernismo, descontrucionismo e construtivismo
O pós-modernismo é uma ideologia ambígua e difícil de definir, a não ser pelo seu objetivo de destruir a modernidade e substituí-la pela pós-modernidade marxista. O motivo pelo qual o pós-modernismo é ambíguo é esconder a sua falsidade. É por essa mesma razão que Jordan Peterson descreveu o pós-modernismo como sendo o marxismo com pele nova.
A falsidade do pós-modernismo está tanto no seu método de destruir a civilização ocidental moderna, através da destruição de suas metanarrativas como o Iluminismo, a racionalidade, a ciência, etc., quanto no seu método de falsificar realidades. Esses dois métodos são chamados deconstrucionismo e construtivismo. Os seus respectivos alvos são a modernidade e a pós-modernidade.
Desconstrucionismo é o processo de aviltamento das coisas características do modernismo através do ataque às suas metanarrativas, reduzindo-as a sequências arbitrárias de sinais linguísticos ou palavras, e em seguida substituindo significados originais por outros, para finalmente concluir que nenhuma interpretação dessas sequências de palavras é mais correta que outra.
Construtivismo é o processo de criar abstrações – constructos – através da retórica. Embora existam certos constructos que são normalmente aceitos, como por exemplo, Estado, dinheiro, lei, e identidades nacionais, o construtivismo da doutrina do pós-modernismo é radical, irracional e desonesto, pois baseia-se na premissa de que tudo é uma questão de semântica.
O desconstrucionismo começou no meio da intelectualidade francesa marxista, sendo Jacques Derrida (1930-2004) o pai reconhecido desse movimento. Inicialmente o desconstrucionismo era uma forma de crítica literária, mas ao ser absorvido pelas humanidades e ciências sociais, passou a ter outras aplicações. Derrida acreditava que o pensamento ocidental foi viciado desde a época de Platão por um tumor que ele chamou de ‘logocentrismo’, referindo-se à suposição de que a linguagem descreve o mundo de maneira bastante transparente. Na visão de Derrida, a descrição do mundo através da linguagem é uma ilusão, e a própria linguagem não é imparcial e as palavras nos impedem de realmente experimentar a realidade diretamente. O que Derrida quer, é derrubar a crença em uma realidade externa objetiva que pode ser explorada através da linguagem, da racionalidade e da ciência, e mostrar que a grande narrativa do Iluminismo não passa de um conjunto de delírios. O método de Derrida para destruir a linguagem é a desconstrução – uma técnica que nos faz ver que os ‘significantes’ – as palavras em si no sistema saussureano – são tão ambíguos e mutáveis que podem significar alguma coisa ou nada.
A ideia original do construtivismo antecede a modernidade, mas o primeiro autor contemporâneo a empregá-la foi o psicólogo suíço Jean Piaget (1896-1980), para descrever o modo como as crianças criam um modelo mental do mundo. Embora os pós-modernos parecem gostar da ligação com Piaget, o construtivismo piageteano é positivo enquanto que o construtivismo pós-moderno é negativo. O construtivismo piageteano afirma que o conhecimento é algo construído pelo indivíduo com base em suas interações com o mundo físico e o mundo social. O construtivismo dos pós-modernos afirma o conhecimento é algo socialmente construído. A fim de distinguir o construtivismo pósmodernista do construtivismo piageteano o primeiro passou a ser conhecido como construtivismo social ou socioconstrutivismo.
A que veio o pós-modernismo?
O pós-moderismo veio para fazer a revolução marxista por debaixo do pano. As suas principais armas são o desconstrucionismo, usado para aviltar o racionalismo e a ciência, e o socioconstrutivismo, usado para criar grupos de identidades políticas e lideranças, através de imagens e figuras de retórica. A estratégia do pós-modernismo e criar subliminarmente uma disposição ou mentalidade pós-moderna, ou um Zeitgeist pós-moderno.
O objetivo do marxismo era criar uma sociedade ideal, mas tal sociedade ideal só podia existir na prancheta, pois a tentativa de implementá-la gerou tiranias genocidas. O pós-modernismo também rejeita a realidade e anseia por uma realidade idealizada.
Na mentalidade pós-moderna, realidade é aquilo que é falado, e o melhor caminho para ser falado é aparecer na mídia. É daí que veio a obsessão com fama e famosos. A mentalidade pós-moderna anseia por identidades fortes pois são um caminho para o poder. Entretanto, a identidade genuína do indivíduo, aquela baseada nas habilidades cognitivas e na bagagem cultural do indivíduo, nem sempre é forte, e por essa razão foi abandonada. Na mentalidade pós-moderna, a identidade e definida pela ‘persona’ – “uma espécie de máscara, desenhada com o duplo motivo de conferir uma impressão firme junto aos demais, e ocultar a verdadeira natureza do indivíduo,” conforme mostrada pelo psiquiatra suíço Carl Jung.

Consequências ruins do pós-modernismo
No Zeitgeist da pós-modernidade a autenticidade saiu de moda e as pessoas preocupam-se mais com aparência do que com substância.
No Zeitgeist pós-moderno, a perda da genuinidade do indivíduo veio acompanhada da perda da espontaneidade dos processos sociais, e uma das consequências não intencionadas disso é a diminuição da confiança social, que por sua vez leva a dois erros de julgamento: valoriza quem não merece ser valorizado, e deixar de valorizar quem merece. Tais erros de julgamento equivalem a enormes perdas para a sociedade, em termos de capital humano desperdiçado.
O começo do mundo pós-moderno
O começo do mundo pós-moderno pode ser traçado à década de 1960, quando as fronteiras entre alta e baixa cultura foram esfumadas. Isso permitiu a emergência da Pop Art e o seu assentamento como uma forma de poder popular. Um de seus líderes, Andy Warhol (1928-1987), prognosticou que “no futuro, todos serão mundialmente famosos por quinze minutos”.
Um dos alvos importantes do pós-modernismo foi o conceito de identidade nacional, que foi esfumado e largado de lado, e substituído pelas novas tribos formadas por grupos de identidade política. Não contente em destruir a identidade nacional, o pós-modernismo destruiu também a identidade civilizacional da América Latina. Muitos latino-americanos tomam por certo que a América Latina faz parte da Civilização Ocidental, uma vez que todos os seus países foram colonizados por europeus. Poucos latinoamericanos notaram que o cientista político Samuel Huntington (1927-2008) optou por listar a América Latina como uma civilização aparte ao invés de incluí-la na Civilização Ocidental, no seu livro Clash of Civilizations (A colisão das civilizações; 1997). A justificativa de Huntington é de que a América Latina não preencheu os critérios a priori para afiliação ao Ocidente. Em termos de identidade nacional, os países latinoamericanos sofrem de uma neurótica dissonância cognitiva formada pelo desejo simultâneo de pertencer à Civilização Ocidental e às suas respectivas culturas indígenas.
Em todo o lugar onde o pós-modernismo se encontra, a sua entrada ocorreu de forma sorrateira. Na América Latina, alojou-se inicialmente nas universidades, principalmente nas humanidades e ciências sociais, e de lá passou para as organizações não governamentais (ONGs) e para os grupos de identidade política.
O socioconstrutivismo
O socioconstrutivismo passou a ser um fenômeno comum na América Latina a partir da década de 1980, quando heróis e heroínas foram artificialmente criados. O método do socioconstrutivismo consiste de cinco etapas principais: (i) escolher causas simpáticas como a defesa de florestas, de animais, e de grupos oprimidos; (ii) a cooptar lideranças a partir de bases conhecidas, (iii) aumentar os perfis dessas lideranças, persuadindo jornalistas a publicar matérias sobre as mesmas, (iv) indicar as lideranças escolhidas para participar de organizações de doadores de recursos e (v) indicar as lideranças escolhidas para prêmios disponíveis e fazer lobby junto a favor das mesmas.
A escolha da causa requer cuidado e atenção. Por exemplo, no caso de uma ONG ligada à causa dos indígenas, as tribos mais coloridas e que ainda praticam suas danças e cerimônias são mais promissores que aquelas que são menos coloridas e mais aculturadas. Uma vez escolhida a causa, o próximo passo é escolher os indivíduos mais promissores em termos de aparência e maleabilidade para serem promovidos junto à mídia.
As maquinações de bastidores para construir lideranças e para atrair o interesse de jornalistas são aéticas, o que gera o perigo de whistle blowers ou denunciantes, que não aceitam que um objetivo nobre justifica mentiras e meias verdades. Entretanto, o socioconstrutivismo tem uma capa de proteção contra denunciantes, fazendo com que qualquer crítica à administração financeira da ONG ou às suas mentiras e meias verdades sejam percebidas como um ataque vil à própria causa, isto é, ao grupo oprimido, à floresta, ou ao animal carismático, fazendo com que o crítico seja taxado de racista e coisas piores.
Um dos poucos exemplos que chegou a ser noticiado na imprensa internacional foi a história da jovem guatemalteca Rigoberta Menchú, que foi transformada numa heroína de sua tribo e que em 1992 ganhou o Prêmio Nobel da Paz. Entretanto, quando o antropólogo David Stoll decidiu avaliar o mérito de Menchú, descobriu que a sua narrativa do genocídio do seu povo, no início da década de 1980, no livro autobiográfico I, Rigoberta Menchú (Verso, 1984), estava repleto de inconsistências e até mentiras, e que o mesmo livro, editado com a ajuda de diversas pessoas, tinha uma agenda, de ajudar a guerrilha à qual Menchú havia se juntado em 1981. Stoll publicou os seus achados no livro Rigoberta Menchú and the Story of All Poor Guatemalans (1999), mas a verdade que expôs foi ignorada e ele próprio acabou taxado de inimigo dos indígenas. O que aconteceu a David Stoll passou a desencorajar qualquer denúncia semelhante. Foi uma evidência da capa de proteção do sociocontrutivismo, análoga à dos vírus.
As pessoas ordinárias, que subentendem aquilo que é conhecido como o público, têm o dever de manter-se atentas ao que acontece a seu redor. A pergunta que devem fazer é “o socioconstrutivsmo é bom para quem?”
i) O socioconstrutivsmo é bom para os indivíduos oprimidos a quem defendem?
O paternalismo do sociocontrutivismo faz com que o indivíduo oprimido continue oprimido, pois tira-lhe as chances de ser ele próprio, e de crescer e amadurecer.
ii) O socioconstrutivsmo é bom para a sociedade?
Mentiras e meias verdades corroem a confiança dentro da sociedade, gerando uma sociedade de baixa confiança, a qual é extremamente desfavorável ao desenvolvimento econômico.
iii) Quem ganha com o socioconstrutivsmo?
Quem ganha com o socioconstrutivismo são os próprios sócioconstrutivistas, que ganham os ouvidos das autoridades e espaços nos círculos do poder.
Conclusão
O pós-modernismo é o próprio marxismo com outra pele. Os dois empregam a mesma linguagem de ressentimento, raiva e inveja. Enquanto que o marxismo tradicional exaltava a destruição do capitalismo que ocorreria em decorrência da revolução socialista, o pós-modernismo (ou neomarxismo), planejou e fez a sua revolução na surdina. A revolução do pós-modernismo foi um sucesso e a prova disso é que a própria civilização Ocidental é a sua prisioneira. O Zeitgeist pós-moderno onde vivemos pode ser descrito pelo relativismo cultural, o aviltamento da sociedade maior através de sua fragmentação em grupos de identidade políticas, a falta de genuinidade e espontaneidade, e as fabricações. As suas armas mais potentes, o desconstrucionismo e o socioconstrutivismo, servem às suas lideranças, que fingem servir às mais diversas causas sociais. A sociedade como um todo não ganhou nada com o pós-modernismo, mas perdeu muita coisa, desde a genuinidade das pessoas e a própria espontaneidade, até a confiança entre os seus cidadãos. O pós-modernismo é errado por diversos motivos, mas o principal deles é a falsidade.

Joaquina Pires-O’Brien é brasileira e reside na Inglaterra. Desde 2010 é editora da revista cultural PortVitoria, dedicada à cultura ibérica no mundo, com conteúdo em português, espanhol e inglês. Acessar: http://www.portvtoria.com

Gulag Archipelago (Book Review) —

This book is a must read for anyone wanting to know more of the Russian prison systems that existed in the early 20th century. On a deeper, more personal level, this book is a testament to the conviction and ultimate transformation of and by the human spirit when forced into extreme hardship.

Gulag Archipelago (Book Review) —

A idade da desonestidade. O pós-modernismo é errado porque é falso

Joaquina Pires-O’Brien

Modernidade e a pós-modernidade

A modernidade e a pós-modernidade são concepções diferentes do mundo. Enquanto que a modernidade baseia-se no Iluminismo e nos avanços do racionalismo e da ciência, a pós-modernidade baseia-se na ruptura com o Iluminismo e com o rigor do racionalismo e da ciência. Dentro da concepção da modernidade surgiu a escola linguística estruturalista, que ao ser absorvida por outras disciplinas das humanidades e das ciências sociais gerou uma visão geral do mundo baseada no conhecimento e na realidade, a qual passou a ser chamada de estruturalismo.  Dentro do estruturalismo surgiram dissidências, as quais não lograram criar uma visão explícita que merecesse o nome de escola filosófica, mas mesmo assim passou a identificar-se como pós estruturalismo. A abordagens respectivas da modernidade e da pós-modernidade confundem-se com essas, e por essa razão, modernidade e estruturalismo viraram sinônimos, assim como pós-modernidade e pós-estruturalismo.

Pós-modernismo, descontrucionismo e construtivismo

O pós-modernismo é uma ideologia ambígua e difícil de definir, a não ser pelo seu objetivo de destruir a modernidade e substituí-la pela pós-modernidade marxista. O motivo pelo qual o pós-modernismo é ambíguo é esconder a sua falsidade. É por essa mesma razão que Jordan Peterson descreveu o pós-modernismo como sendo o marxismo com pele nova.

A falsidade do pós-modernismo está tanto no seu método de destruir a civilização ocidental moderna, através da destruição de suas metanarrativas como o Iluminismo, a racionalidade, a ciência, etc., quanto no seu método de falsificar realidades. Esses dois métodos são chamados deconstrucionismo e construtivismo. Os seus respectivos alvos são a modernidade e a pós-modernidade.

Desconstrucionismo é o processo de aviltamento das coisas características do modernismo através do ataque às suas metanarrativas, reduzindo-as a sequências arbitrárias de sinais linguísticos ou palavras, e em seguida substituindo significados originais por outros, para finalmente concluir que nenhuma interpretação dessas sequências de palavras é mais correta que outra.

Construtivismo é o processo de criar abstrações – constructos – através da retórica. Embora existam certos constructos que são normalmente aceitos, como por exemplo, Estado, dinheiro, lei, e identidades nacionais, o construtivismo da doutrina do pós-modernismo é radical, irracional e desonesto, pois baseia-se na premissa de que tudo é uma questão de semântica.

O desconstrucionismo começou no meio da intelectualidade francesa marxista, sendo Jacques Derrida (1930-2004) o pai reconhecido desse movimento.  Inicialmente o desconstrucionismo era uma forma de crítica literária, mas ao ser absorvido pelas humanidades e ciências sociais, passou a ter outras aplicações. Derrida acreditava que o pensamento ocidental foi viciado desde a época de Platão por um tumor que ele chamou de ‘logocentrismo’, referindo-se à suposição de que a linguagem descreve o mundo de maneira bastante transparente. Na visão de Derrida, a descrição do mundo através da linguagem é uma ilusão, e a própria linguagem não é imparcial e as palavras nos impedem de realmente experimentar a realidade diretamente. O que Derrida quer, é derrubar a crença em uma realidade externa objetiva que pode ser explorada através da linguagem, da racionalidade e da ciência, e mostrar que a grande narrativa do Iluminismo não passa de um conjunto de delírios. O método de Derrida para destruir a linguagem é a desconstrução – uma técnica que nos faz ver que os ‘significantes’ – as palavras em si no sistema saussureano – são tão ambíguos e mutáveis que podem significar alguma coisa ou nada.

A ideia original do construtivismo antecede a modernidade, mas o primeiro autor contemporâneo a empregá-la foi o psicólogo suíço Jean Piaget (1896-1980), para descrever o modo como as crianças criam um modelo mental do mundo. Embora os pós-modernos parecem gostar da ligação com Piaget, o construtivismo piageteano é positivo enquanto que o  construtivismo pós-moderno é negativo. O construtivismo piageteano afirma que o conhecimento é algo construído pelo indivíduo com base em suas interações com o mundo físico e o mundo social. O construtivismo dos pós-modernos afirma o conhecimento é algo socialmente construído. A fim de distinguir o construtivismo pósmodernista do construtivismo piageteano o primeiro passou a ser conhecido como construtivismo social ou socioconstrutivismo.

A que veio o pós-modernismo?

O pós-moderismo veio para fazer a revolução marxista por debaixo do pano.  As suas principais armas são o desconstrucionismo, usado para aviltar o racionalismo e a ciência, e o socioconstrutivismo, usado para criar grupos de identidades políticas e lideranças, através de imagens e figuras de retórica. A estratégia do pós-modernismo e criar subliminarmente uma disposição ou mentalidade pós-moderna, ou um Zeitgeist  pós-moderno.

O objetivo do marxismo era criar uma sociedade ideal, mas tal sociedade ideal só podia existir na prancheta, pois a tentativa de implementá-la gerou tiranias genocidas. O pós-modernismo também rejeita a realidade e anseia por uma realidade idealizada.

Na mentalidade pós-moderna, realidade é aquilo que é falado, e o melhor caminho para ser falado é aparecer na mídia. É daí que veio a obsessão com fama e famosos. A mentalidade pós-moderna anseia por identidades fortes pois são um caminho para o poder.  Entretanto, a identidade genuína do indivíduo, aquela baseada nas habilidades cognitivas e na bagagem cultural do indivíduo, nem sempre é forte, e por essa razão foi abandonada. Na mentalidade pós-moderna, a identidade e definida pela ‘persona’ – “uma espécie de máscara, desenhada com o duplo motivo de conferir uma impressão firme junto aos demais, e ocultar a verdadeira natureza do indivíduo,” conforme mostrada pelo psiquiatra suíço Carl Jung.

Consequências ruins do pós-modernismo

No Zeitgeist da pós-modernidade a autenticidade saiu de moda e as pessoas preocupam-se mais com aparência do que com substância.

No Zeitgeist pós-moderno, a perda da genuinidade do indivíduo veio acompanhada da perda da espontaneidade dos processos sociais, e uma das consequências não intencionadas disso é a diminuição da confiança social, que por sua vez leva a dois erros de julgamento: valoriza quem não merece ser valorizado, e deixar de valorizar quem merece. Tais erros de julgamento equivalem a enormes perdas para a sociedade, em termos de capital humano desperdiçado.

O começo do mundo pós-moderno

O começo do mundo pós-moderno pode ser traçado à década de 1960, quando as fronteiras entre alta e baixa cultura foram esfumadas. Isso permitiu a emergência da Pop Art e o seu assentamento como uma forma de poder popular. Um de seus líderes, Andy Warhol (1928-1987), prognosticou que “no futuro, todos serão mundialmente famosos por quinze minutos”.

Um dos alvos importantes do pós-modernismo foi o conceito de identidade nacional, que foi esfumado e largado de lado, e substituído pelas novas tribos formadas por grupos de identidade política. Não contente em destruir a identidade nacional, o pós-modernismo destruiu também a identidade civilizacional da América Latina. Muitos latino-americanos tomam por certo que a América Latina faz parte da Civilização Ocidental, uma vez que todos os seus países foram colonizados por europeus. Poucos latinoamericanos notaram que o cientista político Samuel Huntington (1927-2008) optou por listar a América Latina como uma civilização aparte ao invés de incluí-la na Civilização Ocidental, no seu livro Clash of Civilizations (A colisão das civilizações; 1997). A justificativa de Huntington é de que a América Latina não preencheu os critérios a priori para afiliação ao Ocidente. Em termos de identidade nacional, os países latinoamericanos sofrem de uma neurótica dissonância cognitiva formada pelo desejo simultâneo de pertencer à Civilização Ocidental e às suas respectivas culturas indígenas.

Em todo o lugar onde o pós-modernismo se encontra, a sua entrada ocorreu de forma sorrateira. Na América Latina, alojou-se inicialmente nas universidades, principalmente nas humanidades e ciências sociais, e de lá passou para as organizações não governamentais (ONGs) e para os grupos de identidade política.

O socioconstrutivismo

O socioconstrutivismo passou a ser um fenômeno comum na América Latina a partir da década de 1980, quando heróis e heroínas foram artificialmente criados. O método do  socioconstrutivismo consiste de cinco etapas principais: (i) escolher causas simpáticas como a defesa de florestas, de animais, e de grupos oprimidos; (ii) a cooptar lideranças a partir de bases conhecidas; (iii) aumentar os perfis dessas lideranças, persuadindo jornalistas a publicar matérias sobre as mesmas; (iv) indicar as lideranças escolhidas para participar de organizações de doadores de recursos; e (v) indicar as lideranças escolhidas para prêmios disponíveis e fazer lobby a favor das mesmas junto às instituições premiadoras.

 A escolha da causa requer cuidado e atenção. Por exemplo, no caso de uma ONG ligada à causa dos indígenas, as tribos mais coloridas e que ainda praticam suas danças e cerimônias são mais promissores que aquelas que são menos coloridas e mais aculturadas. Uma vez escolhida a causa, o próximo passo é escolher os indivíduos mais promissores em termos de aparência e maleabilidade para serem promovidos junto à mídia.

As maquinações de bastidores para construir lideranças e para atrair o interesse de jornalistas são aéticas, o que gera o perigo de whistle blowers ou denunciantes, que não aceitam que um objetivo nobre justifica mentiras e meias verdades. Entretanto, o socioconstrutivismo tem uma capa de proteção contra denunciantes, fazendo com que qualquer crítica à administração financeira da ONG ou às suas mentiras e meias verdades sejam percebidas como um ataque vil à própria causa, isto é, ao grupo oprimido, à floresta, ou ao animal carismático, fazendo com que o crítico seja taxado de racista e coisas piores.

Um dos poucos exemplos que chegou a ser noticiado na imprensa internacional foi a história da jovem guatemalteca Rigoberta Menchú, que foi transformada numa heroína de sua tribo e que em 1992 ganhou o Prêmio Nobel da Paz. Entretanto, quando o antropólogo David Stoll decidiu avaliar o mérito de Menchú, descobriu que a sua narrativa do genocídio do seu povo, no início da década de 1980, no livro autobiográfico I, Rigoberta Menchú (Verso, 1984), estava repleto de inconsistências e até mentiras, e que o mesmo livro, editado com a ajuda de diversas pessoas, tinha uma agenda, de ajudar a guerrilha à qual Menchú havia se juntado em 1981. Stoll publicou os seus achados no livro Rigoberta Menchú and the Story of All Poor Guatemalans (1999), mas a verdade que expôs foi ignorada e ele próprio acabou taxado de inimigo dos indígenas.  O que aconteceu a David Stoll passou a desencorajar qualquer denúncia semelhante. Foi uma evidência da capa de proteção do sociocontrutivismo, análoga à dos vírus.

As pessoas ordinárias, que subentendem aquilo que é conhecido como o público, têm o dever de manter-se atentas ao que acontece a seu redor. A pergunta que devem fazer é “o socioconstrutivsmo é bom para quem?”

i) O socioconstrutivsmo é bom para os indivíduos oprimidos a quem defendem?

O paternalismo do sociocontrutivismo faz com que o indivíduo oprimido continue oprimido, pois tira-lhe as chances de ser ele próprio, e de crescer e amadurecer.

ii) O socioconstrutivsmo é bom para a sociedade?

 Mentiras e meias verdades corroem a confiança dentro da sociedade, gerando uma sociedade de baixa confiança, a qual é extremamente desfavorável ao desenvolvimento econômico.

iii) Quem ganha com o socioconstrutivsmo?

Quem ganha com o socioconstrutivismo são os próprios sócioconstrutivistas, que ganham os ouvidos das autoridades e espaços nos círculos do poder.

Conclusão

O pós-modernismo é o próprio marxismo com outra pele. Os dois empregam a mesma linguagem de ressentimento, raiva e inveja. Enquanto que o marxismo tradicional exaltava a destruição do capitalismo que ocorreria em decorrência da revolução socialista, o pós-modernismo (ou neomarxismo), planejou e fez a sua revolução na surdina. A revolução do pós-modernismo foi um sucesso e a prova disso é que a própria civilização Ocidental é a sua prisioneira. O Zeitgeist pós-moderno onde vivemos pode ser descrito pelo relativismo cultural, o aviltamento da sociedade maior através de sua fragmentação em grupos de identidade políticas, a falta de genuinidade e espontaneidade, e as fabricações. As suas armas mais potentes, o desconstrucionismo e o socioconstrutivismo, servem às suas lideranças, que fingem servir às mais diversas causas sociais. A sociedade como um todo não ganhou nada com o pós-modernismo, mas perdeu muita coisa, desde a genuinidade das pessoas e a própria espontaneidade, até a confiança entre os seus cidadãos.  O pós-modernismo é errado por diversos motivos, mas o principal deles é a falsidade.

Joaquina Pires-O’Brien é brasileira e reside na Inglaterra. Desde 2010 é editora da revista cultural PortVitoria, dedicada à cultura ibérica no mundo, com conteúdo em português, espanhol e inglês. Acessar: www.portvtoria.com

Sobre o livro Rumo à Estação Finlândia (1940) de Edmund Wilson

Jo Pires-O’Brien

O livro Rumo à Estação Finlândia (1940) de Edmund Wilson (1895-1972) é uma das leituras favoritas dos socialistas latino-americanos. Wilson foi um jornalista, periodista, escritor e crítico de sucesso nos Estados Unidos, renomado pela precisão e clareza do seu estilo. Este livro é um interessante apanhado da história do socialismo, incluindo mini-biografias de Karl Marx e os seus antecessores, como Vico, Michelet, Fourier, Saint-Simon e LaSale; mostra como Marx e sua doutrina influenciaram Lênin, Trotsky, Stalin (Estaline) e os outros intelectuais que fizeram a Revolução Bolchevista em outubro de 1917.

Wilson foi um dos mais importantes articuladores do progressivismo de esquerda nos Estados Unidos, quase todos os comunistas e seguidores do socialismo soviético. Ele tinha resolvido escrever um livro sobre o novo regime da União Soviética, o livro que ele acabou dando o título de Rumo à Estação Finlândia . Wilson já tinha gasto muitas horas de trabalho no livro acima mencionado, quando tomou ciência das atrocidades do regime de Stalin. Ele decidiu visitar a Rússia para verificar por si próprio, e de lá retornou desencantado em 1938.

De volta aos Estados Unidos, o próprio Wilson admitiu aos amigos que a situação na Rússia era pior que na época do Czar.  Mas, a época era da depressão econômica e ele precisava de dinheiro. Wilson sabia que tinha um público cativo de seguidores que certamente comprariam o seu livro. Por que jogar fora um manuscrito no qual já havia investido tantas horas? A fim de apaziguar a própria consciência, Wilson eliminou do seu manuscrito um capítulo sobre Stalin e concluiu a narrativa com a chegada de Lênin e dos revolucionários exilados na Estação Finlândia de São Petersburgo. E foi assim que Wilson resolveu intitular o seu livro Rumo à Estação Finlândia .

Na ocasião da publicação de Rumo à Estação Finlândia uma das mais contundentes críticas recebidas foi sobre o fato dele ter feito uma descrição humanitária e benevolente de Lênin, o que resultou da sua falha em consultar a principal biografia de Lênin, de Mark Landau Aldanov, cuja tradução inglesa havia sido publicada em 1922.

Novas edições do livro Rumo à Estação Finlândia foram lançadas, e o livro foi traduzido para diversas línguas. Apenas na edição de 1971 é que Wilson, já com seus 76 anos, escreveu uma nova introdução ao livro, admitindo ter errado no seu julgamento da Revolução Russa e do regime por esta implantada, e, que o livro representa a sua maneira de pensar na ocasião que o escreveu.

A decisão de Wilson de publicar Rumo à Estação Finlândia foi desonesta e baseada no desejo de ganhar dinheiro.  E, as elevadas credenciais do autor são agravantes da falta moral cometida.  O erro admitido no prefácio da edição de 1971 não bastou para remover a mancha da sua desonra, pois, veio tarde demais para conter os estragos da disseminação da ideologia marxista.

No Brasil, assim como em todos os países da América Latica e quiçá da África, a ideologia marxista foi nutrida por intelectuais como Edmund Wilson. Rumo à Estação Finlândia é um dos livros de cabeceira de muitos indivíduos de inclinação marxista de todo o mundo. Será que esses indivíduos conhecem a retratação feita por Wilson no prefácio da edição de 1971?


Jo Pires-O’Brien é a editora de PortVitoria: www.portvitoria.com –  revista eletrônica dedicada às comunidades falantes de português e espanhol de todo o mundo.

A que veio o pós-modernismo

Jo Pires-O’Brien

O pós-modernismo é definido como sendo “um estilo ou conceito surgido no século XX, nas artes, na arquitetura e no criticismo, representado pela rejeição às noções existentes de arte e à modernidade em geral, e centrado numa desconfiança generalizada das grandes teorias e ideologias” (1). O pós-modernismo veio em duas levas de focos diferentes. A primeira, no final da Segunda Guerra Mundial, manifestou-se na reação contra os critérios estéticos da arte, da arquitetura e da literatura. A segunda, no último quarto do século XX, manifestou-se em torno de uma escola de ‘pensamento’ que proclamava “não existem verdades, mas apenas interpretações”.

O pós-modernismo que veio na primeira leva atacou a conceituação estética aplicada à arte e à arquitetura. É difícil avaliar possíveis danos à sociedade causados pelo pós-modernismo que veio na primeira leva. Afinal de contas, que importa à sociedade que alguém resolva construir a sua casa em estilo pasticho? Ou que uma galeria de arte resolva exibir uma cama ‘dormida’ e com lençóis sujos como se fosse uma peça de arte? (2) Afinal de contas, gosto é gosto. Todavia, os danos à sociedade, causados pelo pós-modernismo da segunda leva, foram logo reconhecidos na sua negação dos valores do Iluminismo que deram origem à modernidade e foram cristalizados a partir da segunda metade do século XVIII.

A modernidade foi muito bem descrita no ensaio de Joel Mokyr que foi publicado em português e em espanhol, em 2011, na revista eletrônica PortVitoria. Segue abaixo a conclusão de Mokyr acerca da modernidade:

Por mais improvável que pudesse parecer na época, uma comunidade relativamente pequena de intelectuais, num pequeno canto da Europa do século XVIII, mudou o curso da história universal. Eles não apenas concordaram que o progresso era algo desejável; eles escreveram um programa pormenorizado de como implementá-lo, e, o que é mais admirável, levaram-no adiante. Hoje em dia usufruímos de confortos materiais, acesso a informação e entretenimento, melhor saúde, de ver praticamente todos os nossos filhos chegarem à idade adulta (mesmo se optamos por ter poucos filhos), e de uma razoável expectativa de que passaremos muitos anos de uma aposentadoria economicamente segura e dotada de lazer. Essas coisas eram os luxos que Smith, Hume, Watt e Wedgwood apenas sonhavam. Entretanto, sem o Iluminismo, elas nunca teriam se tornado realidade.

Não há como negar que a modernidade melhorou consideravelmente a qualidade de vida das pessoas. Todavia, essa modernidade não veio de supetão. Foi um produto do amadurecimento da mente ocidental e dos esforços dos pensadores que insistiram em entender o mundo natural por ele próprio, sem levar em conta a revelação religiosa. Os pensadores no centro desse movimento não foram os primeiros a pensar desse modo, mas os primeiros que tiveram coragem de desafiar o poder da Igreja.

A modernidade não jogou fora o conhecimento antigo, pelo contrário, preservou-o junto ao novo conhecimento. A modernidade não apenas transformou o Ocidente, como também acabou sendo incorporada na sua identidade. Dada essa constatação, é mister perguntar por que lhe atiram pedras. De onde veio o pós-modernismo? Por que rejeita e ataca a modernidade?

As raízes do pós-modernismo

As raízes do pós-modernismo estendem-se até a escola de linguística fundada pelo linguista suíço Ferdinand de Saussure (1857-1913) na Universidade de Genebra, na Suíça, no início do século XX. A escola saussuriana deu origem ao movimento conhecido como ‘estruturalismo’, que surgiu em torno da natureza estruturada do ‘signo linguístico’ (a palavra) – formado por um ‘significante’ e um ‘significado’ – o qual forma a base da linguística sincrônica que Saussure priorizou sobre a linguística diacrônica ou histórica. O estruturalismo linguístico preocupou-se em identificar não apenas o que está evidente no texto, mas também o que não está nas estruturas do ‘significado’. Em outras palavras, o estruturalismo linguístico se preocupou em descobrir eventuais discursos escondidos nas entrelinhas.

Da linguística, o estruturalismo migrou para a crítica literária e a antropologia, que logo se ocuparam em descobrir eventuais conspirações em elusivas mensagens subliminares abrigadas nas entrelinhas da teoria. E, como quem procura, acha, os estruturalistas encontraram ‘planos’ e geraram uma teoria de conspiração, segundo a qual ideias e ideologias são impostas às pessoas.

O criticismo literário dos estruturalistas passou a enxergar a literatura não como algo baseado exclusivamente em conteúdo, mas como um sistema relativo capaz de sofrer mutações através da história. Luís Althusser (1918-90) tomou emprestado da linguística o radical ‘semio’ da palavra ‘semiótica’ ou ‘semiologia’, e propôs o termo ‘semio-criticismo’. Jacques Derrida (1930-2004) enxergou a literatura como um veículo de disseminação de ideologia; introduzindo o termo ‘desconstrucionismo’ para designar a técnica de revelar significados escondidos nas entrelinhas. Michel Foucault (1926-1984) reinterpretou a frase ‘saber é poder’ de Francis Bacon (1561-1626) como ‘o saber é um instrumento do poder’, acusando o desejo de adquirir conhecimento técnico de ser um discurso de poder e um instrumento de exclusão.

O movimento conhecido como ‘pós-estruturalismo’ é o próprio estruturalismo, porém criticado; ressalte-se que nem todos os críticos do estruturalismo identificaram-se como ‘pós-estruturalistas. Os proponentes mais conhecidos desse movimento são Althusser, Júlia Kristeva (1941-), Derrida e Foucault. Os pós-estruturalistas criaram uma crítica literária chamada ‘crítica pós-estruturalista, ‘crítica moderna’ ou ‘crítica pós-moderna’, baseada na desconstrução das estruturas conceituais do texto, a fim de revelar os significados ocultos nas entrelinhas do texto literário.

O pós-modernismo fincou raízes na antropologia e nas ciências sociais em geral, e, dessas raízes, surgiu o ‘construcionismo social’, a ideia da linguagem como um instrumento de alavancagem social e de revolução. Dois tipos de construcionismo social foram identificados: o universal e o particular. Ambos veem a linguagem e a comunicação como instrumentos de poder e de empoderamento. O construcionismo universal refere-se ao constructo geral, enquanto que o construtivismo particular refere-se ao constructo de uma realidade específica de uma categoria específica de indivíduos. Quer no construcionismo social universal, quer no particular, a realidade é confinada àquilo do qual se fala, ou seja, a única realidade que existe é aquela que aparece na mídia, e isso foi ressaltado num artigo de revisão assinado por Naveed Yazdani, Hasan S. Murad e Rana Zamin Abbas, publicado em 2011:

Para os filósofos pós-modernos os ‘estudos culturais’ ou estudo de identidade são o esteio principal da cultura e a questão da identidade está impregnada na humanidade. Os ícones da mídia são os componentes chaves da cultura pós-moderna e muitos filósofos contemporâneos sentem-se tão confortáveis escrevendo sobre Madonna quanto sobre política, os clássicos e a ética.

O construcionismo social está ligado à noção de indivíduos deslocados, oriundos dos mais diversos caminhos da vida, da qual vem a ‘morte do sujeito’, que ocorre quando a identidade é desfeita e a capacidade de ação é perdida. O apelo do construcionismo social é a esperança de que qualquer coisa que esteja errada possa ser consertada, uma vez que os significados não são fixos.

Derrida foi identificado como um dos principais instigadores dos protestos contra a globalização ocorridos na virada do século XX em Seattle, Praga, Québec e Gênova. Isso foi feito demonizando o capitalismo e plantando nas mentes jovens a ideia de que a globalização era uma ideologia que precisava ser desconstruída.

A inculcação pós-modernista

A inculcação pós-modernista, no meio acadêmico, tem grande acolhimento no anseio dos professores de manter as coisas como sempre estiveram, principalmente as cercas imaginárias em torno das disciplinas acadêmicas. Tal inculcação é uma sabotagem da educação de mais de uma geração de jovens. Como tais indivíduos vão encontrar significado em suas profissões depois de formados? Como é que vão resolver problemas que requerem discernir a verdade da inverdade, ou o racional do irracional?

Apesar de todas as suas faltas, o pós-modernismo no meio acadêmico norte-americano sobreviveu bastante tempo sem ser incomodado. A explicação mais provável para isso é a continuação da separação entre as ciências e as humanidades, a qual foi o tópico de uma palestra de C. P. Snow (1905-80) em 1959, posteriormente transformada no livro The two cultures (As duas culturas). É provável que muitos cientistas sequer tenham tomado conhecimento do desprezo e dos insultos dos pós-modernistas à ciência.

Quatro acadêmicos que enfrentaram com vigor o pós-modernismo e suas idiossincrasias foram o físico e matemático norte-americano, Alan Sokal (1955-); o filósofo da ciência canadense, Ian Hacking (1936-); o filósofo e classicista, Allan Bloom (1930-92); e o psicólogo Steven Pinker (1954-), professor da Universidade de Harvard e autor de diversos livros acerca da natureza humana.

Sokal é sem dúvida o crítico mais criativo do pós-modernismo. A fim de mostrar a frivolidade desse movimento, ele escreveu um artigo falso, carregado de ininteligibilidade, verbiagem e subjetividade, o qual foi publicado em 1996, no periódico Social Text. Sokal escreveu outro artigo para anunciar o trote, o qual foi publicado um ano depois, no periódico Lingua Franca. O trote de Sokal não acabou de vez com o pós-modernismo, mas pelo menos abalou-o consideravelmente. Contudo, Sokal não parou aí. Em 1997, ele e o francês Jean Bricmont, publicaram o livro Impostures intellectuelles (Imposturas intelectuais), cuja edição em inglês teve o título Fashionable nonsense: postmodern intellectual’s abuse of science (1998; O absurdo que é moda: o abuso da ciência pelos intelectuais pós-modernos). Nesse livro, Sokal e Bricmont mostraram as absurdidades do artigo-trote de Sokal, bem como diversos exemplos de abusos em conceitos e terminologias científicas cometidos por intelectuais famosos.

A crítica de Hacking ao pós-modernismo consistiu em examinar minunciosamente o conteúdo de diversos livros que tinham no título a palavra ‘construção’ com a finalidade de destrinchar os principais fatores unificadores do construcionismo social. O resultado disso foi publicado, em 1999, no livro The social construction of what? (Construção social do quê?). Nesse livro, Hacking lista uma enorme relação de coisas apontadas como tendo sido ‘socialmente construídas’, incluindo raça, gênero, masculinidade, natureza, fatos, realidade e o passado.

Bloom atacou a chamada Nova Crítica (New Criticism) literária, um dos pilares do pós-modernismo. No seu livro The closing of the american mind, publicado em 1986, Bloom denunciou o perigo das influências irracionais, como a Nova Crítica, que grassaram no meio acadêmico dos Estados Unidos. Para Bloom, tais influências comprometem as humanidades e destroem boa cultura universitária dos Estados Unidos. O grande problema, aponta Bloom, é que não existe reciprocidade para a ‘abertura ao fechado’ (openness to closeness) do Ocidente.

Pinker criticou o pós-modernismo e as suas diversas facetas no seu livro Tábula rasa: a negação contemporânea da natureza humana. A crítica de Pinker concentra-se no mau entendimento da natureza humana, causado pelas diversas teorias de conspiração do pós-modernismo, segundo as quais ‘as observações são sempre contaminadas por teorias, e as teorias são saturadas de ideologia e doutrinas políticas; portanto, quem afirma estar em posse dos fatos ou saber a verdade está apenas tentando exercer poder sobre todo o resto’. Pinker aborda, ainda, o relativismo criado especificamente para impedir a crítica das coisas que são tidas como ‘culturais’, o que acaba permitindo diversas violações da integridade física das pessoas como a mutilação genital feminina, o apedrejamento de mulheres e as punições corporais de grande crueldade. Eis como Pinker conclui a sua crítica:

É irônico que uma filosofia que se orgulha de desconstruir o instrumental do poder adote um relativismo que impossibilita contestar o poder, pois nega que existam referenciais objetivos em relação aos quais os logros dos poderosos possam ser avaliados. Pela mesma razão, o texto deveria refrear os cientistas radicais que asseveram que as aspirações de outros cientistas a teorias com realidade objetiva (incluindo teorias sobre a natureza humana) são, na realidade, armas para preservar os interesses da classe, sexo e raça dominantes. Sem uma noção da verdade objetiva, a vida intelectual degenera em uma luta para saber quem melhor consegue exercer a força bruta para ‘controlar o passado’.

Dos quatro críticos do pós-modernismo acima listados, apenas Pinker continua batalhando para corrigir os erros e mal-entendidos do pós-modernismo. Num artigo publicado, em 2013, na revista eletrônica New Republic (3) Pinker fez um apelo, aos autores oriundos das humanidades, contra a mentalidade anticientífica que tem prevalecido nesse meio. Ele explica que as práticas da ciência, como a ‘revisão por pares’ (peer review), o debate aberto e o método duplo-cego, foram criados especificamente para driblar os erros e pecados aos quais os cientistas, por serem humanos, são vulneráveis.

O artigo de Pinker ilustra bem a ofensiva anticiência da mentalidade pós-modernista nos Estados Unidos. No meio do artigo de Pinker apareceu um hyperlink de um vídeo de três minutos com o seguinte título: “ASSISTA a réplica de Leon Wieseltier”. Este último era o próprio editor literário da New Republic. Mas isso não foi tudo. Poucas semanas depois, Wieseltier publica na própria New Republic um longo ensaio, carregado de sarcasmo e termos derrogatórios, intitulado Crimes against humanities: Now science wants to invade the liberal arts. Don’t let it happen (Crimes contra as humanidades: Agora a ciência deseja invadir as artes liberais. Não permita que isso aconteça). Por alguma razão, Pinker aceitou participar de uma terceira rodada desse ‘debate’, numa matéria intitulada ‘Science vs. the Humanities, round III’ (Ciência versus Humanidades, III round), também publicada na New Republic, a qual consistiu de uma tréplica de Pinker seguida de outra de Wieseltier. Outros artigos e blogs foram publicados; em geral, atacando não apenas Pinker e a sua visão da consiliência (a união entre a ciência e as humanidades), mas também as aberrações do darwinismo social e da eugenia, que nada tinham a ver com o artigo inicial de Pinker. Todavia, Pinker foi defendido pelo filósofo e cientista cognitivo Daniel Dennett (1942-), numa matéria publicada na Edge Conversations, considerado o portal mais interessante e estimulante da internet.

Na matéria acima mencionada, Dennett dá uma síntese da situação do setor de humanidades das universidades norte-americanas. Segundo ele, existe uma geração de acadêmicos deficitários que não têm respeito pela evidência e tampouco acreditam na verdade; tais acadêmicos conformam-se com ‘conversações’ nas quais ninguém é errado, e, nada pode ser confirmado, mas apenas afirmado em qualquer estilo que for capaz de desenvolver.

Conclusão

O pós-modernismo é uma investida contra a modernidade que veio em duas levas. Na primeira leva, o pós-modernismo denunciou a cultura como um instrumento do poder, e, na segunda, denunciou a ciência. Todavia, o pós-modernismo não representa a primeira investida contra a modernidade, a qual foi bastante combatida pelos pensadores que insistiam em colocar a Divina Providência na equação do conhecimento.

O pensamento pós-moderno interpreta os critérios de excelência e objetividade da ciência moderna como uma forma de elitismo. Por essa razão, a mentalidade pós-modernista é incapaz de enxergar as coisas boas que resultaram do Iluminismo. Perseguiu os valores iluministas da busca da verdade do mundo natural – em oposição ao mundo supranatural –, o que incluiu a crença no conhecimento unificado, a superioridade do conhecimento científico sobre outros tipos de conhecimento, e, o reconhecimento de um cânone civilizacional e do seu importante papel na Educação Liberal e no ensino das humanidades. Como se não bastasse, preconizou, a impressionáveis mentes jovens, a ideia estapafúrdia de que a ciência moderna e o cânone literário são construtos sociais, manifestações da arrogância e do imperialismo do Ocidente. Causou a guerra das culturas das décadas de 1980 e 1990, e continua atrapalhando o ensino das humanidades, cujos alunos são inculcados a aceitar o relativismo e outras ideias obscurantistas, e a rejeitar a consiliência do conhecimento.

Embora a inculcação pós-modernista tenha sido registrada com firmeza apenas no meio acadêmico dos Estados Unidos, isso não significa que não tenha ocorrido em outros países. Os indivíduos mais bem preparados de qualquer país ou sociedade devem tomar cuidado com as visões radicais de ponta cujas implicações éticas ainda não foram completamente esclarecidas. É esse o caso do pós-modernismo, ideologia que gira em torno da ideia irracional de que os valores da modernidade, característicos da civilização ocidental, fazem parte de uma grande conspiração do Ocidente para manter o poder e a hegemonia. O pós-modernismo é uma doutrina absurda, irracional e enganosa. É o cavalo de Troia da civilização.

Notas

(1) Tradução da definição mais comum em inglês, obtida através do Google: “a late 20th-century style and concept in the arts, architecture, and criticism, which represents a departure from modernism and is characterized by the self-conscious use of earlier styles and conventions, a mixing of different artistic styles and media, and a general distrust of theories.”<https://www.google.co.uk/?gws_rd=cr#q=postmodernism+definition&gt;.

(2) Em 1998, a artista plástica britânica Tracey Emin (1963-) exibiu a sua própria cama ‘dormida’ como uma ‘peça’ de arte intitulada My bed, a qual foi exibida no ano seguinte na galeria Tate Modern, quando foi indicada para o Turner Prize. Em 2000, Charles Staachi, proprietário de uma galeria de arte comprou a My bed por £150.000 libras. A segunda vez que a My bed foi colocada no mercado de arte foi em julho de 2015, quando foi comprada por um colecionador alemão chamado Christian Duerckheim, o qual emprestou a peça de arte à galeria Tate por dez anos. Emin havia expressado o seu desejo de que a sua ‘peça’ ficasse para sempre na galeria Tate Modern, mas esta não dispunha de recursos suficientes. No leilão da Christie, a peça My bed foi vendida por £2,54 milhões, mais do que o dobro do estimado. Numa entrevista, Duerckheim explicou ter comprado a My bed pelo fato de ela ser “uma metáfora para a vida, onde os problemas começam e a lógica morre”. Consultado na Wikepedia e no portal do The Guardian: <https://www.theguardian.com/uk-news/2015/mar/30/tracey-emins-messy-bed-displayed-tate-britain-first-time-in-15-years&gt;.

(3) A revista New Republic foi fundada em 1914, por líderes do ‘Movimento Progressista’ (de esquerda), como uma revista de opinião que busca atender o desafio da nova época. Na década de 1980, a New Republic incorporou alguns elementos do conservadorismo. A revista foi posta à venda em 2012 e adquirida por Chris Hughes, cofundador do Facebook. Em 4 de dezembro de 2014, foi anunciado que Gabriel Snyder, oriundo da Gawker e da Bloomberg, seria seu novo editor chefe, em substituição a Franklin Foer. Além disso, o novo diretor executivo, Guy Vidra, oriundo da Yahoo, anunciou a sua intenção de reduzir o número de edições anuais de 20 para 10, o que provocou uma onda de pedidos de demissão, a qual incluiu a do editor literário Leon Wieseltier. O resultado disso foi a suspensão da edição de dezembro de 2014. A New Republic era inicialmente semanal, passando a 20 edições ao ano. Durante um curto espaço de tempo, publicou 10 edições ao ano, com uma circulação de 50000 exemplares. Em 11 de janeiro de 2016, Chris Hughes colocou a New Republic à venda, a qual foi comprada em 26 de fevereiro por Win McComack. Este assumiu o posto de editor-chefe e nomeou Eric N. Bates, ex-editor executivo da Rolling Stone, editor. A New Republic tem um registro impressionante de colaboradores notáveis. Entretanto, tem também diversas associações questionáveis, como Michael Whitney Staight, que foi editor de 1948 a 1956, o qual, como foi descoberto, era um espião da KGB. Fonte: <//en.wikepedia.org/wiki/The_New_Republic>.


Joaquina Pires-O’Brien é tradutora, ensaísta e ex-botânica e bióloga brasileira, residente na Inglaterra. O seu livro de ensaios O homem razoável (2016) foi também publicado em espanhol e encontra-se disponível na Amazon em edições brochura e Kindle. Em 2010 ela criou a revista digital PortVitoria, voltada para cultura ibérica no mundo, em inglês, português e espanhol. O presente ensaio foi extraido do livro  O homem razoável .

 

Doutrinação e radicalização

Jo Pires-O’Brien

Doutrinação é fazer a cabeça de alguém acerca de qualquer coisa. Radicalização é fazer a cabeça de alguém uma forma tal que o indivíduo radicalizado abre mão dos valores recebidos de sua família e sua sociedade e aceita valores estranhos incompatíveis com os mesmos, como a permissão para cometer crimes. Outra diferença crucial entre doutrinação e radicalização é que a doutrinação não requer a presença física de um doutrinador, podendo ocorrer através da imitação de outros ou de leituras, enquanto a radicalização requer uma relação direta com um radicalizador.

Todo ser humano possui uma predisposição ao gregarismo. Os jovens costumam ter problemas de inserção social, e embora tais problemas, em geral, se devem ao fato de ainda não terem vivido o tempo necessário para mostrar ao mundo quem são e assim ganhar o respeito da sociedade, eles acabam se tornando vítimas fáceis dos radicalizadores.

A inteligência emocional pouco desenvolvida é uma limitação que dificulta os relacionamentos dentro da família e no ambiente de trabalho. Entretanto, à medida que as pessoas amadurecem, elas aprendem a se conhecer melhor e a aceitar as suas limitações. Adultos normais sabem reconhecer a sensação de não pertencer e aprendem a lidar com a mesma, mas os jovens, em geral, não sabem lidar com tal sensação, e acabam tomando decisões precipitadas na expectativa de resolver o problema. O que acontece com os jovens é a aceitação de uma identidade do tipo ‘aqui e agora’, baseada no ‘nós e eles’, isto é, em amigos e inimigos. A identidade do tipo ‘aqui e agora’ atrapalha a identidade orgânica, aquela que se desenvolve gradativamente durante o crescimento moral e intelectual do indivíduo.

A identidade é a moeda dos radicalizadores, que se aproveitam das incapacidades dos jovens de lidar com suas carências identitárias e de inserção social. Tal identidade vem sob a forma de afiliação a um determinado grupo. O grupo tem um enorme efeito psicológico no processo de radicalização. Mais de 80% daqueles que participam de redes de radicalização islâmicas o fazem através de amigos e em grupos.

As doutrinações e as radicalizações são motivadas pelo ódio ao inimigo comum. A radicalismo de Esquerda prega o ódio ao capitalismo e ao liberalismo e o radicalismo islâmico prega o ódio aos Estados Unidos em particular e ao Ocidente, em geral, e ao seu estilo de vida secular e liberal. Esse ódio tanto pode vir de fora do Ocidente quanto de dentro. Enquanto o ódio de Bin Laden veio de fora do Ocidente, o ódio dos terroristas suicidas do 9/11 foi fermentado dentro do Ocidente, com grupos terroristas políticos e organizações de esquerda.

O ódio dá motivo às doutrinações e radicalizações, mas o objetivo dessas é sempre o poder. A extrema Esquerda internacional é uma rede global de grupos de poder cujo objetivo é ganhar mais poder. O radicalismo islâmico é também uma rede de grupos de poder, e o seu objetivo é dominar o mundo através da reconquista de todos os territórios que já pertenceram à teocracia islâmica, os quais incluem o sul da Espanha e de Portugal, a região do Cáucaso da Europa, Filipinas, Ásia Central, Índia, e norte da África.

Finalizando, é bom lembrar que toda radicalização é truculenta, pois, envolve um radicalizador tarimbado e um radicalizado emocionalmente inepto e ressentido com a sociedade. A radicalização islâmica no Ocidente é ainda mais truculenta, pois, envolve persuadir mentes jovens que vivem em meio a elevados valores de individualidade e liberdade a que renunciem a esses valores em troca de uma identidade instantânea, mas cheia de efeitos indesejáveis.


Jo Pires-O’Brien é editora da revista PortVitoria da comunidade ibero-americana no mundo.

Porque eu digo não aos ‘troladores’

Jo Pires-O’Brien

O objetivo maior do meu blog ‘Armadilhas do Marxismo’ está contido no próprio título. O seu objetivo secundário é promover uma conversação construtiva com o leitor. A conversação para ser construtiva requer integridade. Uma crítica honesta apontando algum erro factual ou de raciocínio é perfeitamente aceitável. Entretanto, comentários sarcásticos feitos para incitar ou inflamar uma comunidade de leitores não são aceitáveis, pois, mostram falta de integridade. Tal comportamento é típico de ‘troladores’, pessoas que buscam a fama à custa dos blogs dos outros.

Outubro de 2017. Centenário da Revolução Bolchevique

Jo Pires-O’Brien

Em outubro de 2018 a Revolução Bolchevique que introduziu o regime marxista na União Soviética completará cem anos. Não será uma data de celebração e sim de recordação da memória de como um punhado de fanáticos russos atropelou o recém-nascido projeto democrático em andamento implantado em março do mesmo ano.

Abrindo um parêntese explicativo, o termo ‘bolchevique’ significa ‘maioria’, em contraposição ao termo ‘menchevique’, que significa minoria. A partir de 30 de junho de 1903, quando o Partido Operário Social-Democrata (POSDR, na sigla russa), durante o seu segundo congresso, em Bruxelas, elegeu Georgi Plekhanov como seu presidente, o partido começou o processo de racha completado em 1907. O resultado foi a emergência de duas principais facções: a dos bolcheviques e a dos mencheviques. Embora mantivessem o denominador comum de derrubar o regime do czar e destruir o capitalismo, os mencheviques, liderados por Yuliy Osipovich Tsederbaum (1873-1923), conhecido como Julius Martov, eram bem mais moderados do que os bolcheviques, liderados por Vladimir Ilyich Ulyanov (1870-1924), conhecido como Lenin (Lenine), pois, pensavam democraticamente, tinham escrúpulos quanto ao uso de violência, e aceitavam negociar com os liberais.

Não foram os bolcheviques que derrubaram a monarquia russa e sim um grupo de descontentes que incluía liberais e mencheviques. O líder menchevique que teve um papel importante na Revolução de Março de 2017 era Nikolay Chkheidze (1864-1926), um professor que havia sido eleito para o Duma (o parlamento russo) durante a década de 1880s, e que ocupava o cargo de Presidente do Petrograd Soviet (Presidente da câmara de vereadores de Petrograd ou São Petersburgo).

Lenin encontrava-se hospedado numa pensão em Zurique quando ficou sabendo da queda do regime do czar. A fim de que ele, sua esposa e seus aliados mais chegados pudessem retornar à Rússia, era necessário cruzar a Alemanha, uma nação inimiga da Rússia. Como os seus pedidos de ajuda ao governo da Suíça e ao Governo Provisório da Rússia não deram resultados, Lenin então usou uma artimanha de influência e mentiras. Ele telegrafou a um amigo em Estocolmo pedindo ao mesmo que mandasse uma mensagem a Chkheidze, demandando a ajuda deste para o retorno de mencheviques exilados. O estratagema deu resultado. O embaixador da Alemanha na Suíça foi contatado, o qual conseguiu um salvo-conduto para que os exilados atravessassem a Alemanha, com a condição de que ninguém desembarcasse naquele país nem se comunicasse com ninguém de fora. Escoltados por um representante do governo suíço, Lenin, a esposa e cerca de trinta exilados russos, nenhum deles menchevique, partiram da Suíça no dia 8 de abril, chegando a Petrograd no dia 16 de abril.

Ao chegar a Petrograd, Lenin encontrou-se com Chkheidze dentro do antigo palácio do czar, quando este lhe disse:

“Camarada Lenin”, “em nome do Petrograd Soviet e de toda a revolução, seja bem-vindo à Rússia…, mas nós julgamos que considerando a situação presente, a principal tarefa da democracia revolucionária é defender a nossa revolução contra todo tipo de ataque, tanto de dentro quanto de fora… Nós esperamos que se junte a nós na luta por este objetivo”.

Lenin não respondeu a Chkheidze, mas caminhou na direção de uma janela e de lá ele falou para uma pequena multidão que se encontrava do lado de fora. No seu discurso ele afirmou que a revolução que haviam feito era apenas o primeiro passo de outra que estava por vir a fim de abrir as cortinas da nova época. Depois de sair do palácio, Lenin passou a atacar sem descanso o Governo Provisório.

O ocorrido acima é uma mostra das táticas de mentir, enganar e trair que caracterizaram o ethos dos revolucionários bolcheviques. Entretanto, muitos outros pormenores acerca de Lenin foram descobertas desde a que os arquivos soviéticos foram disponibilizados a partir da última década do século XX. Um dos fatos mais relevantes foi o fato de Lenin ter recebido dinheiro do inimigo (Alemanha), tornando-se de fato um traidor de seu próprio país.

Um dos autores que fez bom uso dos arquivos soviéticos disponibilizados é Sean McMeekin, um premiado historiador americano e professor da Universidade de Kok, na Turquia. Ele acaba de publicar The Russian Revolution. A New History, pela editora Profile. Segundo McMeekin, Lenin tido pouco impacto político na Rússia se não tivesse recebido ajuda financeira da Alemanha. Quando os bolcheviques retornaram do exílio eles compraram uma gráfica por 250 mil rublos (equivalente a cerca de 13 milhões de dólares em dinheiro de hoje), o que permitiu que imprimisse uma quantidade inimaginável de materiais de propaganda revolucionária. É óbvio que tal propaganda disseminou sedição entre a gentalha ignorante tanto da cidade quanto do campo. O dinheiro inimigo permitiu que os bolcheviques batessem de frente contra o Governo Provisório. Entretanto, o contrapeso que mudou o jogo a favor de Lenin foi a promessa bolchevique de acabar com a guerra já, mesmo passando por cima do interesse nacional da Rússia. Segundo McMeekin, Lenin sabia que não poderia vencer a eleição marcada para janeiro de 1918, portanto, planejou uma revolução para outubro de 1917. A Revolução de Outubro, como ficou chamada, derrubou o Governo Provisório do então Primeiro-ministro Alexander Fyodorovich Kerensky (1881-1970).

O historiador britânico Robert Service (1947-), um dos maiores especialistas da história da União Soviética e autor de extensas biografias de Vladimir Lenin, Joseph Stalin e Leon Trotsky. Conforme escrevi na minha resenha da trilogia de Service (PortVitoria 4, Jan-Jun 2012), a minha resenha da trilogia de Service):

Dentro da característica humana de ‘querer melhorar o mundo’ há duas distintas predisposições, uma revolucionária e outra reformista. A predisposição revolucionária difere da predisposição reformista pelo fato de aceitar a violência como meio de se chegar ao fim desejado, e inclui valores totalmente alheios ao humanitarismo. Tal comprometimento cego com o fim faz da predisposição revolucionária um distúrbio de personalidade. Como mostra a psicologia, os distúrbios de personalidade são invariavelmente complexos, isto é, tendem a vir acompanhados de outros distúrbios. A predisposição revolucionária era denominador comum de Lênin, Stalin e Trotsky. Esta foi alimentada pelo Marxismo, doutrina que passou a dominar no meio intelectual da Rússia desde a década de 1890, apesar de que a Rússia daquela época, e mesmo a das duas primeiras décadas do início do século vinte, tinha uma economia medieval, bem diferente do sistema capitalista que segundo Marx incitaria a revolução dos trabalhadores. As três biografias estão lotadas de exemplos de comportamentos que evidenciam valores marginais e distúrbios psicológicos.

Que o centenário da Revolução Bolchevique seja uma lição negativa de história para todos os que dão valor à democracia e à liberdade!

                                                                                                                                               
Joaquina Pires-O’Brien é brasileira residente na Inglaterra e editora da revista PortVitoria, de generalidades, cultura e política (www.portvitoria.com). O seu e-book de ensaios O homem razoável (2016) encontra-se à venda na Amazon.

***

Check out PortVitoria, a biannual digital magazine of current affairs, culture and politics centered on the Iberian culture and its diaspora.

PortVitoria offers informed opinion on topics of interest to the Luso-Hispanic world. Its content appears in Portuguese, Spanish &/or English.

Help PortVitoria to continue by putting a link to it in your blog or Facebook account.

Recessões e surtos de socialismo

Jo Pires-O’Brien

Desde a Grande Depressão que se instalou nos Estados Unidos e no mundo após a Sexta-Feira Negra de novembro de 1929, todas as recessões econômicas provocaram surtos de socialismo nos países de economia capitalista. A recessão econômica de 2008 nos Estados Unidos não foi diferente. Uma ação típica do socialismo foi a intervenção governamental para salvar os bancos em dificuldades financeiras. As normas de mercado que regem o capitalismo apontam outro tipo de ação, no caso, deixar que os bancos solucionem eles próprios seus problemas, o que os torna mais resilientes a ameaças futuras similares.

A mesma recessão econômica de 2008 nos Estados Unidos chegou à Europa e América Latina em 2009, onde também desencadeou surtos de socialismo. Na Europa, os cidadãos dos países cujas economias mais encolheram, como a Grécia, Espanha, França e Itália, continuaram esperando o mesmo nível de assistência social da época favorável, dificultando a implementação de medidas econômicas de prazo mais longo. A recessão econômica na América Latina é possivelmente a mais terrível do mundo. Só quem ganhou com ela foram os partidos de esquerda como o Partido dos Trabalhadores do Brasil, que prometeu manter os programas de assistência social criados durante o boom dos primeiros anos do século XXI.

Em 4 de julho de 2012, Stuart Jeffries escreveu na versão online do jornal de esquerda britânico The Guardian um artigo intitulado ‘Why Marxism is on the rise again’ (Porque o Marxismo está subindo de novo). Jeffries chama a atenção para o fato de que os jovens são os mais interessados no renascer do Marxismo. O apelo socialista não se restringe aos partidos socialistas. O atual líder do Partido Trabalhista britânico, Jeremy Corbyn, escolhido em setembro de 2015, é um defensor aberto do socialismo. Corbyn foi citado nesse mesmo ano pelo jornal inglês The Mirror como tendo afirmado que o socialismo ‘é uma maneira óbvia de viver. As pessoas cuidam uns dos outros, todo mundo é cuidado, e todos cuidam de todos. Óbvio não?’ (… ‘is an obvious way of living. You care for each other, you care for everybody, and everybody cares for everyone else. It’s obvious, isn’t it?’)

Os especialistas creem que a economia global se encontra numa encruzilhada que tanto pode levar ao retorno do crescimento quanto a mais recessão. A melhor alternativa prevê um crescimento continuado, porém pequeno, pelo menos no tocante aos próximos anos. Entretanto, o motor desse crescimento não é a besta do socialismo e sim a besta do livre mercado.

***Joaquina Pires-O’Brien é uma brasileira de Vitória residente na Inglaterra, de onde edita a revista eletrônica PortVitoria (www.portvitoria.com) de atualidades, cultura e política, e, centrada na cultura ibérica e sua diáspora no mundo. PortVitoria é estruturada em inglês, mas os seus artigos e saem em inglês, português e/ou espanhol.

***

Check out PortVitoria, a biannual digital magazine of current affairs, culture and politics centered on the Iberian culture and its diaspora.

PortVitoria offers informed opinion on topics of interest to the Luso-Hispanic world. Its content appears in Portuguese, Spanish &/or English.

Help PortVitoria to continue by putting a link to it in your blog or Facebook account.